quarta-feira, 1 de setembro de 2010

Fera-humana

Ao bater das dezoito horas, o céu escureceu.

Quando anoitece, os cães uivam para a lua e as máscaras caem dos rostos humanos. O sorriso amarelo torna-se um sorriso oblíquo de prazer, de libertação. A alma humanóide grita por liberdade durante todo o tempo que o Astro-Rei se mostra. Mas basta este se esconder que o coração salta mais forte.

É sempre assim. O falso bem vive à claridade do dia, mas o verdadeiro mal, aquele mal que rasga a pele dos seres humanos permanece oculto até o primeiro raio de luar. Basta que este chegue para que as lâminas reluzam à sua luz e que as roupas tinjam-se de rubi.

Eu não sei se é assim com todos, mas comigo é. Eu sou um falso-qualquer-um de dia, a barba a fazer, o olhar caído, os cabelos enbranquecendo-se e o sorriso amarelo sempre presente. Mas ao chegar da noite... bem, ao chegar da noite eu me transformo. Eu viro uma fera-humana, como nas histórias de lobisomens, mas sem sair da minha pele. Como se o calor do sol desse lugar ao frio noturno, meus cabelos se arrepiam e eu tenho uma sádica sede por caos.

Não me lembro muito bem de quando isso começou. Só lembro que foi no dia que perdi meu primeiro caso em um tribunal. Não sei muito bem porque escolhi ser advogado criminal. Acho que no fundo, bem no fundo eu sabia no que eu ia me transformar e bem... sendo um advogado a situação torna-se bem mais fácil.

Ah, sim, agora me lembro. Eu não perdi meu primeiro caso... eu fui humilhado no meu primeiro caso. Meu cliente pegou perpétua e eu sabia, sabia que ele era inocente. Alguma coisa se quebrou dentro de mim naquele dia. Não faço idéia de como cheguei em casa, mas eu só lembro do badalar do meu relógio antigo anunciando às oito horas da noite.

Levantei-me, como compelido por um sopro do diabo. Vesti uma roupa toda branca que me deixava parecido com um fantasma loiro. Vesti luvas de couro negro e peguei a maior faca da cozinha. Eu já tinha tudo em mente, mas, digamos, meu "eu-solar", aquele advogado bonzinho e maria-vai-com-as-outras, fingia que eu só estava saindo para passear, levando a faca porque a cidade era muito violenta à noite. Ingênuo.

Meu "eu-lunar" não se interessava pelo meu "eu-solar". Na verdade, ele o ignorava sumariamente. Estava de noite e era ele que comandava meu corpo. Caminhava a passos largos, a faca bem escondida em meu cinto branco. As pessoas fingiam não me notar, mas se eu me interessasse por elas e olhasse para trás, veria seu olhar indagador para aquele fantasma de mãos negras.

Mal havia saído de casa e estava onde queria estar. Na frente de uma casa ricamente arquitetada, branca, daquele modelo idiotamente puritano que toda a casa de subúrbio da América do Norte tinha. Meu "eu-solar" já havia ido dormir. Não tinha mais influência alguma sobre mim. Fechei as mãos e os dedos protegidos pelas luvas negras, estalaram.

Este dia foi marcado de um prazer embriagado que não me lembro bem, como em um sonho erótico. Eram apenas flashes. Uma mão negra segurando uma faca, atravessando algo macio. Um som de rasgar e o pequeno gorgolejar manchando a roupa branca de vermelho. Sorrisos. Noite. E finalmente o pálido dia.

O raiar do sol foi como um tapa em minha cara. Eu estava nu, deitado em minha cama, os músculos doendo. Sentia-me como se estivesse de ressaca. Vesti-me. Fui até a porta e recebi os jornais. Precisei me segurar nas paredes finas do corredor ao ler a manchete "Magnata vencedor do processo decorrindo ontem é encontrado morto em sua própria casa" e saber que eu tinha feito aquilo. Não era um sonho. Sorri. Era o raiar de uma nova noite.

Nenhum comentário:

Postar um comentário