domingo, 19 de dezembro de 2010

Fera-humana 3

Um ano, dois meses e quatro dias haviam passado desde meu último surto noturno. Na verdade, parecia que eu estava passando por uma maré de sorte. Sem sangue rubro manchando minhas negras luvas. Sem gritos de morte ressoando em minha cabeça. E, principalmente, sem o prazer de fazer justiça rasgando minhas veias.

Durante todo este tempo de estagnação eu pude relembrar como era ter uma vida normal, relembrar como era fazer justiça do modo certo, ganhando casos em um tribunal. Desde meu último frenesi, eu ganhara todos os casos que caiam em minhas mãos e com isso também ganhara muito mais respeito das autoridades vigentes. Isso era bom, pois eu os tinha sob minha mira vinte e quatro horas por dia.

Eu gostava de comparar este mundo no qual eu havia me infiltrado com um pântano. Depois de muito trabalho e força você consegue tirar algum lucro do fundo daquele grande mar de sujeira e corrupção.

Mas (porque sempre tem que ter um "mas"?) tinha este caso. Richard "Dick" Stocker, um típico pai de família, pagava suas contas, trabalhava de segunda a sábado, matara sua mulher por uma traição descoberta... Dick, um dia, foi até meu escritório. Eu trabalhava em um caso de pensão alimentícia (como um favor para Robbie, um amigo sem muitos talentos nos espinhosos ramos do direito), quando ele entrou. O homem até mesmo parecia um clichê de filmes de detetive, terno quadriculado, calvo, com uma mania irritante de usar um lenço para limpar a careca. Trazia uma mala nas mãos, provavelmente com todos os papéis para o processo. Larguei a pasta, erguendo o olhar para o senhor e antes mesmo que eu dissesse meus problemas, ele despejou toda a sujeira em cima de mim.

-Boa tarde, eu conheço sua fama, sei que já tem ganho casos initerruptamente há um ano. Quero que me defenda no tribunal, mas para isso precisa saber a história. -Foi muito estranho ouvir o senhor Stocker deixar toda a história fluir por sua boca sem nenhum maldito sentimento de culpa. Ele havia tentando, primeiro, envenenar a mulher, mas não soubera exatamente a quantidade de arsênico que deveria colocar em sua comida para que ela não sentisse o gosto, por isso colocou pouco demais, apenas o suficiente para que a senhora Stocker tivesse uma crise de vômitos. Frustrado, ele resolveu contratar alguém para fazer o trabalho para ele. Uma noite depois de feito o chamado do profissional, enquanto a mulher se divertia com um amigo do trabalho na casa dele, ela levou três tiros na nuca. Os tiros atravessaram seu crânio, matando junto o amante. Infelizmente para Dick, o profissional não era tão profissional assim. Sua nove milímetros não tinha silenciador e toda a vizinhança havia notado, inclusive o vizinho policial. O homem foi preso e indicou o contratante depois de duas horas na delegacia. -Pois então. Esta é a história. Me tire desta. Dinheiro não é o problema. -Acho que nem se eu fosse um advogado de filmes eu conseguiria tirar este canalha da enrascada na qual se metera. Pelo menos não do jeito que ele esperava. Na hora em que ele parou de tagarelar, eu pude sentir um leve movimento no meu sub-consciente, meu "eu-lunar" acabara de despertar de um longo sono.

É claro que não aceitei o caso. Nunca defenderia aquele homem e como sabia que meu "eu-lunar" acabaria com a raça daquele desgraçado com requintes de crueldade, não queria meu nome envolvido no caso.

Apagão. A escuridão me envolvia a cada vez que meu sub-consciente me dominava. Quando acordei, o coração à toda, me vi deitado em minha cama, minha roupa já em meu corpo, levemente grudada pelo suor. Já estava até com minhas luvas negras. Um táxi businava na frente da minha casa, irritantemente insistente. Sorri e me levantei. Senti o gélido toque da lâmina de minha faca presa em meu cinto branco. O único macular daquela brancura devia-se ao tom negro de minhas luvas. Saí de casa. O alvo havia deixado um cartão comigo, "caso eu mudasse de idéia". Ele devia saber que meu "eu-lunar" não me deixa mudar de idéia. Quem tem a mente fraca nessa relação é meu "eu-solar", pálido, sorridente e inocente. Dei um endereço há um quarteirão do meu destino. Não precisava de um taxista idiota me denunciando às auto-denominadas autoridades. Desci do carro e cheguei na casa do alvo mais rápido do que esperava. Tateei em meu bolso e encontrei meu celular. Disquei o número do cartão. Eram onze horas. Uma luz se acendeu na casa e o contorno difuso de uma pessoa pegou o telefone. Antes que ele dissesse qualquer coisa, eu disse:

-Você tem visita. -E desliguei. Simples assim. A imagem do homem olhando para o telefone, provavelmente com um semblante confuso, fez um sorriso brotar em meus lábios. Ele largou o telefone e foi até a porta. A partir daí não pude ver mais nada. Fui até a janela de seu quarto, idiotamente aberta. Entrei por ali e me lembrei de uma frase que mamãe dizia: "Os únicos que morrem afogados são os que sabem nadar". Sorrindo, infiltrei-me na escuridão do quarto, próximo ao armário. Ouvi a porta sendo aberta e a voz do alvo. "Malditos passadores de trote!", logo em seguida ouvi seus passos aproximando-se. Uma animação negra fez meu coração saltar. Meu "eu-lunar" regozijava-se com a futura morte. O terceiro causado pelas mãos da justiça dos homens.

O alvo não teve tempo nem de gritar. Com velocidade, foi imobilizado, ambos os braços sendo quebrados para trás com golpes que nunca havia aprendido. O sorriso não saia de meu rosto enquanto fazia o pobre Dick desmaiar de dor.

Quinze minutos depois ele acordou, preso à própria cama pelas pernas e braços, os quatro membros quebrados em fraturas expostas. A dor era insuportável. Ele estava pálido, sangrando até a morte. Cada segundo sendo acompanhado por um homem de branco que o olhava, sorrindo. Sabia que seria seu fim. Com um último suspiro desesperado, uma última gota do precioso liquido rubro derramada, quando o último gorgolejar refinado de pavor e dor foi liberado, ele morreu. O sorriso desapareceu do rosto da figura e ela saiu pela janela. Trabalho concluído.

Quando acordei em minha cama, tinha duas novas sacolas aos meus pés. Roupas para meu próximo ataque. Sorri, sentindo o cheiro de queimado que vinha do porão. As roupas antigas. A justiça havia sido feita.

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